segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Manual de instruções #1


Como apanhar pendente partícula de pó?

Primeiro - Fixar um (e só um) cotão brilhante que oscila para onde mandar o vento
Segundo - Fechar a mão em torno dessa partícula
Terceiro - Abrir a mão, observar as suas linhas e mais nada
Quarto e último - Aceitar que é impossível guardar pedacinhos tão belos e que o que nos pesa nos bolsos é nada mais do que vazio

Vazio esse que ocupa os interstícios entre coisas mas que nele contém o necessário para se ser coisa: luz, espaço e gravidade.


terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Começa assim Ardente Texto Joshua, de Maria Gabriela Llansol:

- Se eu nada fizer, nada existirá.
- Mas se fizeres, poderá existir. Ou não.
- Sempre a inexistência tem mais força? - pergunto.






sábado, 18 de janeiro de 2020

Cidade Visível


Sou abordada na rua por alguém que me pergunta como chegar a X:

- Sabe dizer-me como chegar a X?

Responder parece-me impossível. Nunca parti do ponto onde me encontro para chegar até X. Já estive em X, sei onde fica. E já parti daqui para muitos outros lugares. Mas não, a resposta parece-me impossível. 

-O melhor será dirigir-se até Y, é ali já à frente, e perguntar a alguém como chegar até X a partir daí.

Assim o faz. Agora em Y, o nosso sujeito perdido perguntará novamente como chegar a X:

- Sabe dizer-me como chegar a X?

E alguém responderá em titubeante instrução:

- O melhor será dirigir-se até Z, é já ali à frente, e perguntar a alguém como chegar até X a partir daí.

E agora em Z, abordará novo transeunte (tão perdido quanto ele) que lhe indicará um novo meio caminho. Assim vagueará o nosso Aquiles, cada vez mais perto, mas sem nunca alcançar o seu destino. Nesta sua jornada, percorrerá toda a cidade, medida pelas verdades de cada um. Não há unidade de medida universal: cada um dos seus habitantes tem seu próprio passo e a sua própria história. Nenhum deles conhece os nomes das ruelas ou os números das portas. Os percursos X-Y, Y-Z e assim por diante são ditados pelos signos que cada um deles reconhece: varanda tropical, mercearia cidreira, raíz choruda, saco esquecido, cão maldisposto.
Assim vagueará o nosso Aquiles, olhando em frente e esquecendo-se dos seus meios percursos por falta de girassóis vigilantes ou nuvens com forma de tartaruga.






quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Notas de iPhone #1

1. Fui muito sincera, é suposto ser uma representação de mim mesma.

2. Pickles de cenoura
    Paradoxo de Zhang

3. Gibóia ou hera do diabo;
    regar uma vez por semana.

4. Café, luvas, livros, livros.
 
5. Pensar em coisas grandes enquanto fazemos coisas pequenas


Criei este blog como exercício mnemónico. Vejam bem: às vezes, deambulando, penso em voz alta. Melhor: sempre penso. Quando não falo em voz alta, penso em voz alta. Penso nas horas, no jantar, no tempo, nos contratempos. Não penso para onde vou, isso não, ou logo a magia do andar determinado se perde nos leigos passos. Movo-me porque sei para onde vou, apesar de só lembrar outras coisas. É que encontrei uma forma de combater tantos afazeres: a lista.
Sempre que penso algo importante, procuro um papel para anotar tal coisa. Pode ser falta de courgete para sopa, um filme para ver com o Mariano, uma morada bonita ou um novo poeta louco. Aponto porque me acalma, aponto para não ter de lembrar. A palavra escrita vive e a palavra falada pode ser nova.
 Tenho três tristes cadernos porque pensei sistematizar meus tigres pensamentos em três categorias diferentes: tarefas, citações e ideias. Tenho três cadernos mas todos têm tarefas, citações e ideias. Tenho ainda a aplicação Notas do telemóvel, guardado no bolso longe do coração mas perto da mão destemida. Às vezes esqueço-me do que pensei anotar, outras vezes a palavra apontada perde intensidade face ao diálogo mental. Mas assim é: tento apontar tudo o que me pareça importante.
E é importante misturar agriões com Rimbaud, vermelho com Llansol, datas com soluços. Daí nasce uma nova linguagem.
Criei este blog como exercício mnemónico. Vou partilhar algumas coisas que penso acompanhadas de coisas que rabisco. Deixo-vos com uma bonita lista de Clarice Lispector  retirada daqui. Perdoem-me por não ser Clarice.